A bênção, pela qual arde o meu corpo, nasceu
na região celeste em que a Trindade habita,
que desde o princípio por amor me escolheu
para receber o efeito de sua permanente visita.
A bênção, pela qual o meu coração palpita,
é fruto de uma vontade que foi ao apogeu
quando Cristo na cruz tornou apenas seu
o pecado em torno do qual meu ser orbita,
melhor, orbitava, mas por amor, fui feito filho
de Deus por meio da ternura maravilhosa
de Jesus, que infundiu em mim o seu brilho
coberto de entendimento puro e sabedoria plena
para que eu veja o propósito da trajetória terrena
e possa viver para o louvor da sua graça gloriosa.
(Soneto 3 de “Teopoesia paulina da história”)
As oito estatuetas do Oscar para “Quem quer ser um milionário?” (“Slumdog millionaire”), do diretor britânico Danny Boyle, renderam diferentes comentários por parte dos críticos, que oscilaram entre os adjetivos “maravilhoso” e “péssimo”.
Embora se trate de uma história bem-sucedida de amor, o filme põe em jogo uma questão: por que Jamal, o “cachorro favelado” indiano, virou um “milionário”, ao ganhar, no programa de perguntas e respostas, o prêmio de 20 milhões de rúpias indianas, algo equivalente a 390 mil dólares (americanos) ou quase um milhão de reais (brasileiros)?
O filme dá uma resposta simples: o sucesso de Jamal se deveu ao destino. “Está escrito” ─ é a explicação para sua vitória. Este tipo de determinismo é muito comum nos meios de comunicação de massa. No seriado televisivo “Lost”, de audiência mundial, o personagem John Locke é retratado como alguém que toma decisões com base naquilo que considera ser o seu “destino”. Muitos filmes, especialmente aqueles com heróis que salvam o planeta, são tributários do fatalismo. É como se a vida tivesse um script, do qual não se pode fugir, como não pode fugir o herói de “O curioso caso de Benjamin Button”, com sua vida transcorrendo ao contrário, mas transcorrendo segundo o que estava pré-determinado.
No caso de “”Quem quer ser um milionário?”, o autor do livro (“Sua resposta vale um bilhão” ─ “Questions and answers”, no original) em que se baseou o filme, Vikas Swarup, afirma ter uma perspectiva diferente da vida. Para ele, diferentemente do argumento da película, o triunfo do adolescente foi uma questão de sorte. Thomas (o nome de Jamal, no livro), explica Swarup, “adquire conhecimento sem necessariamente estar atrás dele. E isso é algo que nos passa sempre a vida sem nos darmos conta. Ele teve sorte de tropeçar em coisas que lhe seriam valiosas no futuro. Mas será que isso não é comum a todos nós? E só precisamos prestar atenção no que nos passa diante dos olhos? Reparar nos acasos também é construir conhecimento. Ele sai vitorioso ao notar isso”.
Temos aí, portanto, uma oposição de perspectivas. Evidentemente, não dá para se fazer uma filosofia ou teologia da história, a partir desta obra de arte. Os autores (tanto do filme quanto do livro) colocam as suas posições muito claramente. Sobretudo, traçaram o enredo a partir dessas perspectivas. Cabe-lhes ficar com as suas visões de mundo, que são (uma e outra) as de muitas pessoas.
No entanto, podemos nos perguntar: por que algumas pessoas são bem-sucedidas e outras não o são?
Uma resposta recorrente é a que aparece num livro-filme, lido-visto por milhões de pessoas, no começo do século 21 (“O segredo”). Nele, Rhonda Byrne ensina que “aquilo em que você mais pensa ou se concentra se manifestará. Sua realidade atual ou sua vida atual é resultado dos pensamentos que você tem”. No ano em que eu nasci (1952), Norman Vicent Peale já dizia a mesma coisa no seu “O poder do pensamento positivo”, que li aos 20 anos: “Mude seus pensamentos e você mudará seu mundo”. Eis o segredo da vida, nesta perspectiva: você terá o que desejar.
Segundo o ideal de Doyle-Swarup, o favelado indiano (ou brasileiro) que não tiver sorte ou não estiver destinado a ser um vencedor continuará sendo um favelado, sem qualquer chance. Neste contexto, terá que fazer escolhas, como a que fez Salim, o irmão de Jamal. E nisto o filme é exemplar: a escolha de Salim levou à morte porque era um caminho de morte. E esta não foi a escolha de Jamal.
Precisamos de uma perspectiva que nos distancie das visões de Danny Boyle ou de Vikas Swarup ou de Rhonda Byrne, por mais popularidade que tenham.
1. O futuro é o resultado de nossas escolhas. Das nossas e das dos outros.
Temos dificuldade em aceitar o preço de nossas escolhas, as ruins, é claro. Temos mais dificuldade ainda em aceitar o preço das escolhas dos outros, com suas consequências sobre nós. Não importam as nossas dificuldades em aceitar os resultados das escolhas: é assim que a história se dá. Nós somos seres livres, mas isto inclui outras pessoas. Os exercícios das liberdades se realizam nos territórios dos conflitos. Pode ser mais cômodo conviver com a ideia de que as coisas estão “escritas”, porque elas nos eximem de qualquer culpa por escolhas de consequências ruins. Um dos momentos luminosos do líder Josué, no século 15 a.C., foi a sua pública declaração, dirigida aos hebreus: “Escolham hoje a quem irão servir, se aos deuses que os seus antepassados serviram além do Eufrates, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra vocês estão vivendo. Mas, eu e a minha família serviremos ao Senhor” (Josué 24.15). Nós somos responsáveis por nossas escolhas, que nos afetam e também afetam aos outros. Os outros são responsáveis por suas escolhas que lhes afetam e nos afetam também.
Enquanto escrevo estas linhas, escuto duas notícias vindas do Zimbabwe. Na primeira, o partido do presidente Robert Mugabe arrecadou 250 mil dólares para festejar o seu aniversário. Na segunda, o primeiro-ministro visita um hospital cujo CTI está fechado porque não tem 35 mil dólares para a reforma necessária. A escolha de Mugabe afeta a vida do seu povo, que o mantém no poder e sofre as consequências de seu apoio, não importa se fruto do medo ou da simpatia.
2. O futuro é o resultado de nossos esforços para a sua construção.
Em todos os tempos o fácil nos seduz. Para que trabalhar, se podemos ganhar uma “bolada” na loteria? Para que nos esforçar, se podemos participar de um programa tipo “Big Brother”, em que o prêmio é muita grana ou muita fama, passageiras ou não? No caso de um cristão, para que ficarmos ansiosos, se Deus pode nos dar o que precisamos enquanto dormirmos, como aparentemente ensina o Salmo 127.2? É bem verdade que, numa sociedade injusta e desigual, nem sempre o trabalho é justa e igualmente remunerado, como é verdade que alguns triunfam sem esforço e suor. Voltando ao Salmo 127, o que aprendemos ali é outra verdade: “Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar cedo e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento. O Senhor concede o sono àqueles a quem ele ama. (Ou: o Senhor supre aos seus amados enquanto dormem” (Salmo 127.1.2). Se eu pudesse resumir numa frase este salmo, resumiria assim: Deus nos convida a construir o futuro em parceria com Ele. Como consideramos o trabalho? Como um território só nosso, pelo qual conseguimos o que queremos? Ou como um território de esforço e de confiança em Deus, Aquele que nos abençoa durante o dia de trabalho e depois do dia de trabalho, durante o descanso? Ao longo da Bíblia, ecoa o som deste convite. O trabalho sozinho é soma. O trabalho em parceria com Deus é multiplicação. Afinal, como aprendemos na Bíblia, “desde os tempos antigos ninguém ouviu, nenhum ouvido percebeu, e olho nenhum viu outro Deus, além de ti, que trabalha para aqueles que nele esperam” (Isaías 64.4).
3. O futuro é o resultado de uma constelação de oportunidades.
Como as estrelas das galáxias, elas passam por nossas vidas: às vezes, nós as vemos e, às vezes, não. Umas são boas e outras são ruins, o que nos remete às escolhas da vida. As oportunidades são, na verdade, o resultado das escolhas dos outros sobre nós. O que fazemos com elas determina nosso futuro. O que fazemos com elas tem a ver com a nossa capacidade de ousar e persistir, de nossa coragem e de nossa confiança em Deus como Aquele que está conosco enquanto agimos. Podemos ver estas oportunidades como acasos, sortes ou bênçãos, dependendo de nossa teologia. O acaso, isto é, o fato sem explicação para nós existe, mas ele é muito limitado para produzir resultados aleatórios. A sorte, que é estar no lugar certo e na hora certa existe, mas demanda ações: depois de estar no lugar certo e na hora certa, é preciso ir além, com ações concretas e responsáveis. A bênção, isto é, a intervenção de Deus para trazer sucesso ou para evitar uma tragédia existe, mas jamais virá como prêmio à irresponsabilidade. O Deus revelado na Bíblia é um Deus que trabalha, criando do nada tudo o que existe, e espera que os que confiam nEle também trabalhem, criando novas realidades e novas oportunidades. O trabalho é um mandamento divino (Deuteronômio 5.13). “Quem trabalha a sua terra terá fartura de alimento, mas quem vai atrás de fantasias não tem juízo” (Provérbios 12.11).
Deus conhece o nosso futuro, que será o que nós construirmos, em parceria com Ele. Crer nisto e viver segundo esta percepção é a melhor escolha que podemos fazer:
Eu sei que o Senhor me livrará de toda obra do mal,
porque para Ele e por Ele todas as coisas são,
e me levará a salvo para o seu Reino celestial,
onde poderei exercer com plenitude a adoração.
Deixarei de ser estrangeiro para ser cidadão real
e verei os atributos invisíveis de Deus como eles são
e da fonte inesgotável sorverei o fruto da graça total
para que seja o que devia ter sido: perfeita criação.
Perguntarei: “Onde está, ó morte, a tua vitória?
Onde está, ó morte, o teu chicote de ferro duro?
Por que te calas agora? Perdeste a memória?”
Cantarei a Jesus, quando estiver sentado no futuro:
“Teu sou, como te pertencem o passado e o venturo.
A ti, somente a ti, para todo o sempre, eu dê glória”.
(Soneto 14 de “Teopoesia paulina da história”)
Autor – Israel Belo de Azevedo