Era uma vez um funcionário público motivado
Era uma vez um funcionário público motivado que achava que trabalhar na administração do bem comum era algo de nobre, que valia mais, nem que fosse um pouco, que trabalhar para uma grande empresa privada. Certo das suas convicções, não se importou de ganhar metade do salário dos seus colegas de faculdade que foram para a tal empresa. Não se importou com a má reputação que a sua condição gozava na opinião pública. Não se importou com os atropelos à lei que via acontecer diariamente à sua volta. Não se importou com o aproveitamento político e financeiro que a classe dirigente fazia dos cargos de direcção. Não se importou porque achava que a sua atitude, a sua motivação, o seu empenho e dedicação podiam mudar as coisas, podiam contagiar gente à sua volta, podiam até convencer que se todos pensassem e agissem assim, a administração deixaria de ser mais um campo de batalha política e de enriquecimento de alguns.
Era uma vez um funcionário público motivado que um dia se começou a importar com o facto de as coisas não terem mudado. Um dia em que reparou que as coisas até tinham piorado. Importou-se com o facto de o congelamento do seu salário por dois anos consecutivos ter ocorrido na mesma altura em que foram triplicados os salários de gestores de hospitais privatizados que não eram responsabilizados pela sua má gestão. Na mesmíssima altura em que lhe foi pedido pelo seu dirigente para não trabalhar, viu uma série de consultores externos com avenças do triplo do seu salário entrar no seu serviço com a missão de fazer o seu trabalho. Viu que os consultores não fizeram o seu trabalho. O trabalho ficou por fazer, o seu salário foi pago, os dos consultores também. Mas o trabalho ficou por fazer.
Importou-se quando um consultor da confiança do seu dirigente preparou um concurso público para a avaliação de um serviço público para, imediatamente antes da sua abertura, cessar a sua avença e montar uma empresa privada que, coincidência, se candidatou ao concurso.
Importou-se quando percebeu que o bem comum não merecia o mínimo respeito pela classe política, e que era abusado para servir os interesses económicos de curto prazo de alguns poderosos que tinham comprado essa mesma classe.
Importou-se porque se convenceu de que a visão de futuro do bem comum que essa classe tinha era a mais retrógrada desde o tempo em que a ditadura decretou a diminuição da escolaridade obrigatória. Importou-se porque os valores que pensava serem os essenciais ao progresso de uma sociedade – educação, formação, ciência, saúde, solidariedade, justiça – representavam afinal um entrave ao progresso da economia de capital.
Era uma vez um funcionário público motivado que perdeu a motivação. Começou a perceber porque é que os seus colegas tinham desistido de se empenhar no seu trabalho, preferiam ler o jornal, telefonar à família ou fazer um solitário no computador. Afinal, era o que os dirigentes os incitavam a fazer.
Era uma vez um funcionário público motivado que começou a sentir náuseas cada vez que via um político ou um dirigente arrogantemente e orgulhosamente debitar teorias que descaradamente contrariavam toda a sua prática.
Era uma vez um funcionário público motivado que já não o é.