Entre a dor e a saudade

Neste sermão vamos pensar um pouco sobre estar entre a a dor e a saudade.

Texto Bíblico: Sl 146

Introdução

Era outubro de 1994. Numa manhã de segunda-feira, tão despretensiosa quanto qualquer outra daquele início de primavera, levantei-me sem muita pressa. Iria visitar meu pai num hospital próximo de minha casa. Mais uma vez ele estava internado para cuidar de sua leve hemorragia estomacal e, como em outras oportunidades, eu sabia que ele passaria uma ou duas noites sendo medicado e logo voltaria para casa. Porém, isso não aconteceu. Para a infeliz surpresa de todos, e principalmente a minha, naquele dia aconteceu o pior: eu perdi o meu pai.

Sem dúvida, aquele foi o dia mais triste de minha vida. A dor da perda, a separação irreversível, a ausência – que a partir daquele momento seria definitiva – e uma indescritível sensação de completo desamparo. Naquela lastimosa manhã de primavera uma grande chaga abriu-se dentro de mim e que, às vezes, ainda teima em sangrar.

Talvez você também tenha, assim como eu, um triste relato sobre a perda de um ente querido, alguém muito amado que se foi, há muito ou há pouco tempo, cuja falta inunda seus olhos e coração de lágrimas. Mas, para esses dias de profunda consternação, a Palavra de Deus mostra-se presente e oportuna para abrandar nossas mazelas.

E no texto bíblico do Salmo 146 essa preocupação com o amparo e o sustento dos que viveram a dura experiência da perda de alguém amado é manifesta.

O texto do Salmo 146, datado do período pós-exílico, fazia parte integrante da oração diária da manhã no judaísmo tardio. É um hino de louvor que celebra o projeto de Deus e o que Ele produz, procurando despertar nosso amor para com Ele, cuja ação benfazeja no mundo leva os fiéis a confiar na ajuda divina.

Nesse ambiente de celebração diária e de exultação, chama-nos a atenção a presença de dois elementos, a princípio, destoantes: o órfão e a viúva. Distintos em suas características próprias, mas congruentes num ponto crítico. Esse ponto é a o acontecimento do evento morte, e não uma morte distante ou irrelevante – se é que alguma morte pode ser considerada irrelevante –, mas a morte de um ascendente ou cônjuge, uma pessoa com a qual se mantinham fortes ligações emocionais e de assistência, pois naquele contexto, essa perda não significava apenas a falta de companhia, mas a total ausência de amparo e sustento.

Assim, como lembrada a cada manhã nesta oração judaica, a morte se faz presente no diário, no cotidiano. Ele é uma realidade da qual ninguém pode fugir, nem mesmo poderosos ou príncipes – como apresenta o salmo –, podendo também, infelizmente, alcançar-nos a qualquer momento. E, quando ocorre, esse triste evento abre em nós chagas profundas, as quais, como nos dias passados, necessitam de tratamento para que não causem uma aflição maior.

E quando falamos de chagas podemos, também, nos reportar aos dias do escrito sagrado onde, para se tratar dessas feridas era uso comum o derramar de óleo sobre o ferimento para que ele fosse curado. É evidente que tal aplicação não o sarava instantaneamente, mas trazia alívio ao ferido e seu emprego, paulatino e ininterrupto, era capaz de curá-lo em definitivo.

A morte de alguém amado abre em nosso peito chagas que latejam, que sangram, e que em vários casos, continuam a pulsar por muito tempo. Elas necessitam de um cuidador que deite sobre elas o óleo balsâmico e lhes proporcione refrigério. Esta ação está a cargo do nosso Deus, através de seu Santo Espírito – o Consolador –, atuando prontamente nesse cuidado.

Diante do que já falamos, podemos entender que Deus age derramando seu óleo sobre a…

1 – Chaga da dor [o pregador dirige-se ao altar e, simbolicamente, toma um pequeno jarro com óleo e derrama um pouco sobre um bandeja]

Num momento inicial, quando somos surpreendidos pela morte, um sentimento instantâneo e inevitável, que dilacera as entranhas, é o de dor. Uma profunda dor para a qual não há nenhum analgésico eficiente. É uma dor na alma, no mais profundo do ser, parecendo nos alterar de tal maneira que não nos sentimos mais a mesma pessoa, e até nos leva a crer que nunca mais poderemos sê-la.

A nossa impossibilidade em compreender o luto, as circunstâncias da morte, a não aceitação da perda, as sensações de solidão e impotência, os ressentimentos e a aparente ausência de um sentido para a vida são alguns dos agravantes para a intensificação da dor do enlutado.

No texto bíblico, podemos citar uma ocorrência dessa natureza na história de Noemi, relatada no primeiro capítulo do livro de Rute, quando, após a perda de seus filhos, ela retorna à Belém, sua cidade e, muito consternada com os acontecimentos, apresenta como seu novo nome, Mara, a amarga. Porém, essa amargura não se perpetua graças à ação divina, proporcionando a Noemi e a Rute – a fiel companheira descoberta na adversidade – um final de dignidade.

Essa dor da perda, a primeira vista incontrolável, é sanada pelo agir divino no Seu cuidado com aqueles que acham que, diante da perda de uma pessoa amada, nunca mais conseguirão sentir o pulsar da vida em si, porém, o Senhor age, convertendo essa dor em agente de transformação, oferecendo uma alternativa de continuidade para que a vida não interrompa seu dinâmico movimento de prosseguir.

Deus age derramando seu óleo sobre a…

2 – Chaga da tristeza [o pregador dirige-se ao altar e, simbolicamente, toma um pequeno jarro com óleo e derrama um pouco sobre um bandeja]

Num segundo momento, já passada aquela dor dilacerante descrita há pouco, aloja-se no peito humano um segundo sentimento, tão forte quanto o anterior, porém, com uma duração mais prolongada. Este sentimento é a tristeza.

Não é a mesma tristeza que sente uma criança ao perder um brinquedo dentre tantos que possui em seu quarto, mas assemelha-se à melancolia, um pesar tão expressivo quanto aparentemente infindável, produto da ausência irreversível decorrente do passamento da pessoa amada.

Uma tristeza tão intensa pode ser encontrada no relato verotestamentário no livro de 2 Samuel, quando da ciência por parte do Rei Davi acerca da morte de seu filho Absalão e de sua reação de choro e lamento praticamente incessantes, numa manifestação incontida de sua imensa tristeza somente represada com as palavras sábias de Joabe.

E represada é uma palavra que expressa muito bem o que acontece com esse sentimento. A tristeza não é anulada ou esquecida pela pessoa, mas sim contida, sob o controle de uma ação potente capaz de mantê-la assim até que não mais manifeste sua incontrolabilidade, mas caminhe para o um estado amadurecido de nostalgia.

Em nós o agente desse processo é o próprio Deus, em sua infinita misericórdia e compaixão, cuidando do coração humano para que as feridas, já estancadas, possam começar o período da cicatrização, podendo levar um tempo extenso, mas, com o agir divino, com êxito assegurado.

Deus age derramando seu óleo sobre a…

3 – Chaga da saudade [o pregador dirige-se ao altar e, simbolicamente, toma um pequeno jarro com óleo e derrama um pouco sobre um bandeja]

Se pudéssemos estabelecer um último patamar de uma escala sentimental de um indivíduo vinculada ao evento morte não seria absurdez indicarmos a saudade. Esse sentimento é o estágio final num processo de experiência de mortalidade familiar, não sendo por isso menos penoso que os anteriores, ao contrário, pelo fato de acompanhar a pessoa por anos, ou mesmo décadas, é necessário cuidar de seu abrandamento sob pena da agravação da chaga aberta.

Ao trazermos à memória a morte de Moisés, relatada no epílogo do livro de Deuteronômio, vemos que o povo de Israel pranteou por cerca de 30 dias o seu passamento e, mesmo encerrando-se os dias de pranto de luto por Moisés, mostra-se evidente a falta que os israelitas sentiam de seu grande líder, cuja lembrança permaneceu e permanece viva até os dias de hoje no seio daquela nação.

A saudade em nós, quando não cuidada, pode gerar uma imobilidade para a vida, levando a pessoa a uma extrema nostalgia, convencida de que não pode prosseguir sem a companhia do ente falecido, mas quando bem tratada pode converter-se numa lembrança propulsora para a vida e para novas realizações, e o maior e mais significante exemplo disso é a lembrança da morte de Jesus Cristo que representa para os crentes o fato determinante de motivação da fé, da esperança e da própria vida.

Quem cuida da nossa saudade, deitando Seu óleo sobre nossa chaga, é o Senhor que, mediante seu amor incondicional e isonômico, confere ao ser humano a possibilidade da conversão de um instante de aparente fim intransponível, para um trampolim para a vida, apoiado nas lembranças positivas deixadas como legado por aquele que já partiu e pelo fortalecimento concedido pela ação de Seu Santo Espírito.

Os enlutados sempre estarão em nosso meio e ao nosso redor, e não sabemos quem será o próximo. Eles estão nos necrotérios, nos cemitérios, nas capelas, nas criptas, nas nossas ruas e dentro de nossas comunidades, à espera de uma palavra de esperança, ânimo, consolo e, algumas vezes apenas de nossa companhia e solidariedade.

Em face de tudo o que já dissemos, podemos entender que…

Nosso soberano Deus não hesita em prontamente alcançar o carente de amparo, de refúgio ou de proteção, principalmente nos dias de solidão, de tristeza e de perda. Hoje nós somos os órfãos, as viúvas, os pais que perderam seus filhos, os que precisam de ajuda para sustentar-lhes a vida em meio a esses graves e terríveis momentos.

A ação divina, através da força regenerativa da Palavra e da ação restauradora do Santo Espírito, é plenamente eficaz na vida de quem confia em Jesus Cristo, cuidando do coração ferido como seu óleo balsâmico – para o qual não existe genérico – e impulsionando-nos a prosseguir em nossa caminhada terrena, pois ainda que não haja caminho, há que se caminhar.

Declaramos comumente em nossa trajetória de fé que o Senhor é o dono da vida. Assim, cremos que Ele pode dar a vida, pode tirá-la e dá-la de volta a quem quiser, e ninguém nos pode tirar essa fé. Mas também sabemos que Ele age no amparo e no conforto do órfão, da viúva, de todo aquele que vive o luto e, o agir de Deus nesse momento é de essencial precisão, pois nem mesmo as mais lindas palavras, do mais alto e erudito vocabulário humano, são capazes de abrandar a dor de um coração enlutado.

E nesta manhã, ao participarmos do corpo e do sangue do Cristo, busquemos encontrar motivação e energia para o prosseguir, mesmo diante da perda de alguém que nos fora por demais importante, através do supremo exemplo de transposição do termo para um estado potencial de geração de uma nova vida, oferecido pela ressurreição de Jesus, o nosso Salvador.

 

Conclusão

Que a gloriosa Graça de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo seja com toda a amada congregação e que o inefável bálsamo do Espírito Santo de Deus transborde sobre as nossas mentes e corações, sarando as chagas da dor, da tristeza e da saudade, e proporcionando a mais pura e plena paz que somente é encontrada na presença do Deus da vida, o bom e único.

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