Marcos 14.3-9
Quero recordar o Domingo de Ramos, quando se recorda a entrada de Jesus em Jerusalém, abrindo os episódios dramáticos da sua Paixão e Ressurreição que lá sucederiam. Tendo isso em mente, mas diferentemente do usual, quero compartilhar um outro episódio sucedido depois da entrada em Jerusalém e ocorrido em Betânia. Trata-se do texto da unção de Jesus em Betânia, rico de lições para nossa reflexão e prática cristã.
Este texto tem uma longa história de interpretações, mas, sem dúvida, o ponto mais suscetível de longos comentários é a frase de Jesus após o ato de unção pela mulher. Diante da indignação de alguns discípulos pelo que consideravam um desperdício, responde Jesus: “Deixai-a; por que a molestais? Ela praticou boa ação para comigo. Porque os pobres sempre os tendes convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre me tendes” (Mc 14.6-7). Para mim, este texto é claro, quanto à questão dos pobres e a importância que eles tinham para Jesus. A verdade é que foi no meio deles onde Jesus viveu e exerceu a maior parte do seu ministério.
Hoje, pessoas ideologicamente mal-intencionadas usam a frase de Jesus em João 12.8 sempre com o objetivo de pôr nos lábios dEle uma legitimação da pobreza como um estado irreversível. Quando não, para dizer que a pobreza é um castigo de Deus, fato comum em algumas teologias evangélicas na América Latina, desconsiderando assim duas coisas:
1).O objetivo e contexto em que Jesus usou a frase, algo que a nossa leitura em Marcos muito ajuda. O momento era de um serviço a Ele, Jesus; por isso, ele elogia a mulher e contesta os discípulos. Em seguida ordena que eles deveriam servir aos pobres, pois estes permaneceriam, depois da sua morte, carentes do serviço da comunidade da fé. Sem nos alongar, poderíamos mostrar como o exemplo de Jesus e sua frase vingaram no contexto da Igreja Primitiva, seja em Atos dos Apóstolos, como nos escritos paulinos, ou demais epístolas do Novo Testamento. Em Atos, a instituição dos diáconos se dá para o serviço aos pobres. Paulo, escrevendo aos Coríntios ( 2 Co 8.6-9), fala sobre oferecer com alegria aos pobres. Finalmente, o clamor da epístola de Tiago é veemente em condenar os ricos (Tg 5.1-6) que, segundo Tiago, enriquecem, retendo os salários de seus empregados.
2) O segundo aspecto é sobre o qual iremos nos deter mais: é a preocupação de Jesus em realçar a ação daquela mulher, restaurando e dando um lugar de destaque a quem estava condenada, numa sociedade patriarcal, a uma condição profundamente marginal. Essa era a situação das mulheres na época de Jesus. Isso prova que a ação e ministério de Jesus se dá em favor daqueles que, por força de uma estrutura social injusta, vivem na marginalidade e muitas vezes no total desamparo.
Por isso, em vez de prosseguir como a maioria dos comentadores na questão do pobre, quero, sim, meditar sobre o que Jesus disse sobre a mulher.
“Em verdade vos digo: Onde for pregado em todo o mundo o Evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua”. Devemos sublinhar esta frase, pois não encontramos nenhum homem ou outra mulher de quem Jesus tenha se referido dessa forma. Inclusive, no texto grego, aparece um verbo que nem sempre é traduzido por ter uma função auxiliar, mas cujo significado ajuda a entender a força da frase, é ele o verbo poieô cuja tradução é fazer. O sentido é que no futuro fariam contar por todo o mundo o feito dessa mulher.
Cabe uma pergunta agora: Por que Jesus deu destaque a essa mulher?
Não importa ser ela ou não Maria, irmã de Lázaro. Poderia ter sido outra. Para compreender melhor, analisemos o acontecimento em partes. O contexto, a expectativa e procedimentos em relação a Jesus, como Jesus reagia às expectativas e como Ele se sentia e finalmente a atitude da mulher e a palavra de Jesus a ela.
O contexto literário deste texto é bastante amplo, pois se encontra na grande unidade chamada História da Paixão e Morte de Jesus Cristo, que tem seus primeiros momentos nos relatos de anúncio da paixão, mas que é demarcado basicamente com a entrada triunfal em Jerusalém até os relatos da ressurreição.
O contexto sócio-histórico e econômico é o de dominação. Ou seja, um povo dominado por uma nação estrangeira (os romanos). Este mesmo povo preparava a sua festa máxima, a Páscoa, a qual recordava como Deus os libertara do domínio de uma nação estrangeira (os egípcios). Isso criava sempre a esperança de que Deus nesta Páscoa pudesse suscitar uma nova libertação através do Messias (Jesus), como fizera no passado.
Esta era uma das pregações da própria tradição rabínica e parte da teologia judaica contemporânea a Jesus. Segundo eles, é na Páscoa onde ocorrem os grandes eventos na História de Israel. E citavam: Enquanto Ezequias celebrava a Páscoa com Isaias e o povo, o anjo do Senhor destrói os exércitos de Senaqueribe (2 Cr 30; 2 Rs 19.35-37; Is 37.36-38); o levante de Matatias, o Macabeu, também ocorre em função da proibição de celebrar a Páscoa, ordem dada por Antíoco IV durante o período grego. Segundo os escritos da Apocalíptica Judaica, era na Páscoa que o Juízo de Javé cairia sobre Edom e as nações pagãs da Terra, e o livramento de Israel ocorreria.
Tudo isso só fazia aumentar em torno de Jesus a expectativa do que o Mestre iria fazer por Israel. Essa expectativa popular era contraposta pela política de boa vizinhança, mantida pelos membros do Sinédrio (Sacerdotes, Anciãos e Escribas) com os romanos. Prova disso era que embora o povo vindo para a Páscoa aclamasse a Jesus, seus líderes tramavam sua morte (Mc 14.1-2).
Mesmo entre os seus íntimos discípulos, a tensão e a ansiedade eram grandes. A mãe de Tiago e João veio pedir “preferência” (mordomias, favores) para os seus filhos. Houve mesmo brigas entre os discípulos por lugares no Reino que, para muitos, Jesus iria instaurar em Jerusalém. Todos em torno a Jesus queriam para si alguma posição.
Abrindo um parêntese: hoje, na maioria dos casos, as pessoas se relacionam com Deus também na base de usufruir vantagens para si. Em toda parte e em todo o tempo encontramos esse tipo de religiosidade.
Sendo assim, tais acontecimentos e o egoísmo nele implícito deviam deixar Jesus em profunda tristeza; tanta falta de visão, tanta ambição, tanta dureza de coração e tanto orgulho certamente o deixaram desolado. Podemos perceber parte dessa tristeza e desolação em muitos momentos: o seu lamento e choro à vista de Jerusalém (Lc 19.41-44), assim como sua oração angustiada no Getsêmani (Mc 14.33-34) posteriormente ao episódio da unção. Tal era o estado emocional do Filho de Deus. Sendo Ele plenamente Deus, mas também plenamente homem, podemos tentar imaginar o que foi para Jesus aquela última Páscoa, junto com seus discípulos, encerrando o seu ministério entre os homens. Frequentemente, minimizamos os conflitos humanos vividos por Jesus, mas a verdade é que Ele chorava, ria, se entristecia e se alegrava.
Diante desse quadro, dá para entender a importância dada por Jesus ao gesto daquela mulher.
Repito: se você procurar em todo o Evangelho, não vai encontrar em nenhum relato, a narrativa de alguém que se aproxima de Jesus durante o seu ministério, que não fosse para pedir, ameaçar ou perguntar. Com a exceção da pecadora que em casa do fariseu lavou os seus pés e os beijou (Lc 7.36-50).
Em contraposição, aquela mulher ofertou a Jesus o que tinha de mais precioso. Alguns comentaristas (exegetas) ocupam tempo descrevendo ser o perfume de nardo da Índia e trazido por caravanas ocasionais e vendido caro, tudo para sublinhar o valor do gesto da mulher. O segredo do seu gesto está no dar. Contudo, não somente no dar a Jesus, mas também em dar o melhor. Aqui reside o segredo da boa ação, segundo o próprio Jesus reconheceu. Muitos podem dar e dão, no entanto poucos dão tudo ou dão o melhor. Frequentemente, damos o que não nos serve mais, ou ainda, o que nos sobra. Não foi essa a oferta daquela mulher, tampouco foi esta a oferta de Jesus para nós, a da mulher tinha um valor simbólico muito grande. Ou seja, solidariedade com Jesus. A oferta de Jesus foi sua própria vida por nós, uma dádiva que custou caro. Como dizia D. Bönhoeffer: a graça preciosa.
Cabe ainda sublinhar que essa mulher foi a única a entender claramente os anúncios sobre o sofrimento de Jesus, algo não aceito e tampouco compreendido pelos discípulos (Mc 8.31-33). Isso por ocasião do primeiro anúncio da paixão. No entanto, ela entendeu que o sacrifício e a morte de Jesus se aproximavam, compreendia o quanto o ministério de Jesus importunava os poderosos. Exatamente por ter entendido sua oferta é um consciente ato de amor, compaixão e compromisso com o Messias que haveria de ser crucificado. Disse Jesus: “ela fez o que pôde: antecipou-se a ungir-me para a sepultura”.
São todas estas coisa já mencionadas que torna esta mulher diferente das outras pessoas que estavam com Jesus naqueles dias. Devido a isto, é que Jesus dá um destaque eterno a ela, ao seu gesto: basicamente, por amor, ela deu.
Agora, irmãos, diante da Palavra de Deus, somos sempre desafiados a meditar. Cabem algumas perguntas: Com quem nos assemelhamos mais? Com as multidões que ansiosas aclamavam festivamente sem maior compromisso? Ou com os discípulos, que disputavam um posto, um cargo mais honroso? Ou melhor, podemos dizer que nos assemelhamos àquela mulher? Finalmente, como temos nos aproximados de Jesus? Diante da imensa oferta por Ele a nós: a sua própria vida, o que podemos oferecer-lhe de melhor?