A Doutrina do Reino de Deus

Texto: Mateus 5:1-12


1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos;
2 e ele passou a ensiná-los, dizendo:
3 Bem-aventurados os humildes de espírito,porque deles é o reino dos céus.
4 Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
5 Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.
7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
9 Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
10 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
11 Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós.
12 Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós.


Introdução: 


Um dos temas de teologia mais discutidos no período romântico e pós-kantiano, no século XIX, na Escola de Ritschl, da qual faziam parte Herrmann e principalmente Adolf von Harnack, era o Reino de Deus. Compreendido como uma realidade moral, puramente ética, culminou no esvaziamento de outros sentidos possíveis do termo. Ver o Reino como noção, ou seja, vê-lo como intervenção escatológica; ver o Reino como símbolo, ou seja, como algo relacionado ao que significa, como a lembrança da ação de Deus; ou como libertação, ou seja, a dimensão da transformação do mundo, foram três dimensões meramente esvaziadas no seu sentido mais profundo. 1 O Reino se transforma no domínio humano divinizado, a garantia de que Deus seria aquele que sujeita nossos atos a leis universais de retribuição.2 O resultado é a certeza que muitos tiveram de que o Reino é apenas construção humana, ou uma realidade  apenas imanente. Elimina-se a irrupção do divino no humano, e domestica-se a divindade em benefício da sociedade que não suporta as culpas por ignorar o Transcendente.3 
 
Exposição:


Aparentemente simplista, conforme afirma o próprio Albert Schweitzer, esta solução que imanentista do Reino toca num dos temas mais freqüentes dos evangelhos. As relações entre Deus e o homem sempre foram um desafio à compreensão e um fenômeno cultural, e a doutrina do Reino dos Céus, ou Reino de Deus, define princípios e valores que regem as condutas e a relação entre Deus e o homem. 
O Evangelho de Mateus trata deste Reino, o Reino dos Céus, contextualizadamente, tendo por pano de fundo uma realidade social que tinha por característica, segundo Andrew Overman, a hostilidade da liderança judaica contra os cristãos, acrescida da sensação de ruína nacional advinda da falência das tentativas de vivenciar a vontade de Deus através das revoluções armadas e da violência. Esta violência gerou as guerras judaicas, que culminaram na desolação de Israel. Dentro desta concepção, a comunidade que recebeu o evangelho de Mateus estava sofrendo uma dupla afronta: a perseguição dos adeptos do judaísmo formativo, e a realidade social desprivilegiada e fragmentada, que gerou desagregação e disputas internas na Igreja. Neste contexto, as bem-aventuranças anunciadas por Jesus são apresentadas aos membros da comunidade.
O ponto focal do problema da comunidade era, segundo Anthony Saldarini, a conservação da identidade cristã frente à diversidade de pensamento dos grupos religiosos judaicos no período da formação da tradição farisaica, que culminaria na expulsão dos cristãos judaicos das sinagogas. Antes disto, o evangelho foi escrito, e a valorização da lei é mantida, mas é atrelada à compreensão de que Jesus é o verdadeiro e mais autorizado intérprete desta.
Neste contexto, as bem-aventuranças foram dirigidas aos discípulos, e nestas está presente a descrição resumida do sofrimento dos membros da comunidade frente à realidade hostil advinda da inaceitação dos princípios cristãos no bojo da comunidade judaica maior. Esta dificuldade é apresentada de forma simbólica, mas também vívida: os discípulos tem fome e sede de justiça, mas também choram, e são perseguidos. Esta realidade dura precisa ser enfrentada, e as palavras de Jesus são palavras que apontam para uma realidade maior que todas as dificuldades: a realidade do reino dos céus.
Neste aspecto, o texto apresenta a doutrina do Reino dos Céus, também chamado de Reino ou, como defende Alan Richardson, Reinado de Deus. Trataremos portanto, nesta manhã, em conformidade com o texto, da Doutrina do Reino dos Céus.


Tema: A Doutrina do Reino dos Céus e, em primeiro lugar, o Reino dos Céus é:
 
A Certeza e a Esperança dos Discípulos
3 Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.
5 Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
O texto das bem-aventuranças apresentam uma tensão escatológica entre o presente e o futuro, entre o que é e o que há de vir. Esta tensão escatológica é o fundamento daquilo que os discípulos vivem. No presente, já são parte do Reino, e isto é uma certeza indissolúvel, apregoada por Jesus, reafirmada por Mateus e pregada hoje. Humildes, no grego ptochos, significa “pobre, mendigo”. Designa aqueles que dependem de esmolas para sobreviver. No caso, o termo sofreu uma mutação: se antes designava aqueles que estão imbuídos da dependência total dos outros, agora são aqueles que dependem totalmente de Deus. Por isto é que Mateus acrescenta o termo “de espírito”, ou melhor traduzindo, “no espírito”, designando que não é a pobreza propriamente dita, mas o estado de dependência de Deus. Esta realidade presente é paralela a realidade daqueles que são chamados de mansos no texto. O termo grego é “praeis”, designativo do estado de humildade, não relacionado diretamente no grego a idéia de carência econômica, mas designativo do estado de carência. É um termo paralelo ao termo do verso 3, e diretamente relacionado ao Antigo testamento, ao Salmo 37.11. Isto mostra a tensão entre presente (os pobres, que são do reino) e futuro (os mansos ou humildes, que são herdeiros da terra, ou seja, que recebem de Deus aquilo que supre a sua carência). O texto afirma a certeza dos discípulos sobre quem são, quem é o seu Deus, a quem pertencem. O texto também afirma que o futuro reservado é um futuro de cuidados divinos, ou seja, eles podem ter esperança. Isto se repete nas outras bem-aventuranças. Todas elas, exceto as dos versos 3 e 10 e 11, apontam para uma esperança futura. O Reino dos Céus é, por isto, uma certeza no presente, e esta certeza é que já fazemos parte deste Reino. Mas é uma esperança futura, porque a plenitude deste Reino muda a nossa condição.


Aplicação
Podemos, frente às dificuldades que advém em nossas vidas, ter a certeza de que não estamos desamparados. Mas podemos afirmar que temos a esperança irredutível de que o fim da história não pode ser, e não contraria a vontade soberana de Deus. Podemos descansar, sabedores que o nosso trabalho não é vão. Trabalhemos com certeza de que somos do reino que há de vir, e já o vivemos, de certa maneira, aqui. Mas descansemos sabendo que as aflições que passamos não perdurarão para sempre. 


Em segundo lugar, o Reino dos Céus é:  Uma Realidade Estabelecida por Deus
4 Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
5 Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.
7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
9 Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.


O centro de todas os benefícios que os humildes de espírito e perseguidos recebem está na ação de Deus. Deus é aquele que consola, concede a herança, farta os famintos e sedentos pela justiça, usa de misericórdia com os misericordiosos, se mostra aos limpos de coração e é Pai daqueles que selam a paz entre aqueles que estão em guerra. Deus é o agente do Reino, aquele que executa todas as ações de forma a cobrir os discípulos da certeza de que estes não estão desamparados no mundo.
Isto é extremamente relevante, já que outras concepções foram anunciadas no decorrer da história. Schweitzer afirmou que nós somos construtores do reino dos Céus, seguindo a linha daqueles que, seguindo Emmanuel Kant, afirmam que os princípios morais são apriorísticos. Outros, seguindo a tradição evangélica de Joaquim de Fiore, afirmam que o Reino é transcendente, devendo buscá-lo pela contemplação. Mas o Reino é vindo da parte de Deus. Por isto a Igreja ora, ensinada por Jesus, “venha o teu Reino”. Toda a tentativa de autojustificação, ou de crença no poder das realizações humanas isoladas, deve sucumbir frente ao anúncio de Jesus de que o Reino é estabelecido plenamente no futuro, na inversão da ordem perversa. Os atos e a presença dos discípulos de Jesus no mundo indicam que o Reino é antecipado escatologicamente. Mas a plenitude do reino só pode vir de Deus, soberano sobre céus e terra. É por isto que a Igreja também ora: seja feita a sua vontade, “assim na terra como no céu.”


Aplicação:


Precisamos acreditar que temos responsabilidades morais no mundo. Mas não podemos nos esquecer que o reino é estabelecido por Deus. Isto ocorre através de nós, por vezes, mas não somos o fundamento do reino, mas os instrumentos. Precisamos ter isto em mente para nunca sucumbirmos à tentação da autojustificação.
Em terceiro lugar, o Reino dos Céus é:


Fundamento das Ações dos Discípulos


(v. 12) Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós.
A expressão “regozijai e exultai” está intimamente ligada, no texto, à esperança: há um galardão, um prêmio. Mas também se liga ao ministério dos profetas, que também foram perseguidos por causa de sua atuação. Tudo isto aponta para a principal ação da Igreja: a sua vivência cúltica, a adoração e louvor ao Deus que tem guardado a cada dia a comunidade. A Septuaginta usa os dois termos do texto, kairete e agalliaste, para designar a celebração cúltica, a alegria em celebrar e viver a cada dia a fé viva no Senhor. Usa no primeiro livro de Samuel, capitulo 1, verso dois, na oração de Ana, que afirma: Então, orou Ana e disse: O meu coração se regozija no SENHOR, a minha força está exaltada no SENHOR; a minha boca se ri dos meus inimigos, porquanto me alegro na tua salvação. Usa nos salmos 32 e 98; o primeiro, no verso 11, reproduz o texto de Mateus, afirmando: Alegrai-vos no SENHOR e regozijai-vos, ó justos; exultai, vós todos que sois retos de coração. 
Antes mesmo deste texto, os discípulos são apontados como realizadores dos valores do Reino: fazem aquilo que Deus espera deles. São agentes da paz, são imbuídos de dependência e mansidão, e tantos outros valores que identificam-nos como pertencentes ao Reino.
Isto demonstra que as ações dos discípulos, sejam elas no culto, sejam elas na vida, não devem se fundamentar na revolta frente às circunstâncias adversas, mas na vivência da nova realidade de Deus antecipada na temporalidade pela manifestação do amor divino, frente aos desafios impostos pelos perseguidores. O culto não pode ter fim. A adoração, a alegria da salvação, deve ser manifesta antes mesmo que o livramento se historifique, já que o Reino dos Céus é garantido pelo próprio Deus.


Aplicação:


Uma das principais obras da Idade Média, a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis, faz a seguinte oração: “Mas, como sou fraco no amor e imperfeito na virtude, necessito ser consolado e confortado por vós; por isto visitai-me e instruí-me com santas doutrinas.”4 Ao mesmo tempo que isto era pedido pelos monges que liam seu livro, o mundo de então naufragava em crises, e a população ao redor do mosteiro de Kempen morria de fome e inanição. Cumprir a vontade de Deus é ir além das orações, e alcançar o outro num abraço de amor, matar sua fome, perdoar suas transgressões contra nós, não utilizar dele para o nosso bem-estar, mas fazê-lo tomar parte em nossas benesses. Isto cumpre o amor, e é a vivência efetiva do reino que esperamos. 


Conclusão:


Portanto, a doutrina do Reino dos Céus, ou do reino de Deus, é a afirmação de que este é A Certeza e a Esperança dos Discípulos, que aparece como Uma Realidade Estabelecida por Deus, para ser o Fundamento das Ações dos Discípulos.
O Reino de Deus e suas características expressas no texto demonstram a necessidade que temos de vivenciá-las. Precisamos ter a consciência que o Reino de Deus não é derradeiramente construído por nós, mas que podemos vivenciá-lo antecipadamente, pautando nossas vidas em seus valores, aguardando que Deus nos dê a sua bênção e que suas promessas escatológicas se cumpram. Somos eleitos chamados para cumprir e viver a vontade de Deus. Que se cumpra em nós o que diz Calvino: a soberania de Deus é o que nos consola no dia mal. Que Deus nos abençoe!
 
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