Ser como criança, uma lição a não se esquecida por gente grande

Texto: Lucas 18.15-17

Há seis anos, no segundo semestre de 2010, eu iniciava meus estudos em teologia na FTSA. Vim logo após a conclusão de minha licenciatura em filosofia, pela UEL. Amo estudar, e dou muito valor ao saber. Porém, dentro de pouco tempo me peguei frente a uma grande tentação: a soberba do conhecer. Ela chega sorrateira, exigindo credenciais.

Como discípulos de Jesus, o nosso desafio é integrar as pessoas na nova dinâmica proporcionada pelo evangelho. Porém, às vezes nos pegamos como aqueles que impõem barreiras. Não que nos tornemos pessoas más e repugnantes, mas sim que passamos a reproduzir valores tidos por normais em nosso trato com as pessoas – a partir de nossas escalas de valores sociais, econômicos, denominacionais, educacionais, etc.

A gente cresce, e entra no mundo da gente grande. Porém, o mundo da gente grande, em nome de suas credenciais e escalas de valores, nos faz colocar barreiras em lugares em que o evangelho nos convida a construir livre passagem. O evangelho invade o mundo da gente grande e nos desafia a viver segundo uma nova lógica: a lógica da vida daqueles que entram no Reino de Deus.

Nesta noite eu gostaria de conversar um pouco com vocês, futuros teólogos e teólogas, sobre esse desafio a nós dirigido pelo evangelho, tendo como pano de fundo o episódio desse encontro de Jesus com as crianças. Talvez um alerta: “o saber é muito bom, mas pode ensoberbecer; e quando nos ensoberbece, levantamos inúmeras barreiras”. Para vocês eu gostaria de em poucas palavras falar no seguinte tema: ser criança, uma lição a não ser esquecida por gente grande.

Transição: para tanto, eu gostaria de olhar para cada personagem, e observar como o relato estrutura a relação entre eles, identificando o desafio que a posição de Jesus deixa pra nós. Comecemos pelas crianças…

As crianças

Sobre ser criança no tempo de Jesus: “como todos os meninos de Nazaré, Jesus viveu os primeiros sete ou oito anos de sua vida sob o cuidado da mãe e das mulheres de seu grupo familiar. Nestas aldeias da Galileia, as crianças eram os membros mais fracos e vulneráveis, os primeiros a sofrer as consequências da fome, da desnutrição e da enfermidade. A mortalidade infantil era muito grande. Por outro lado, poucos chegavam à idade juvenil sem ter perdido o pai ou a mãe. As crianças eram sem dúvida valorizadas e queridas, também as órfãs, mas sua vida era especialmente dura e difícil” (PAGOLA, 2014: 67).

O AT traz uma valorização dessa personagem:

Deuteronômio 6.7 – a declaração diária de fé de Israel, o Shemá, continha um compromisso didático com as gerações futuras: “tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te”.

Salmos 127.3 – os filhos eram vistos como bênção para o casal, pois “herança do Senhor são os filhos”. A mulher estéril sentia-se humilhada por sua condição, pois a fertilidade feminina era vista como bênção de Deus, e a infertilidade como maldição/vergonha.

Deuteronômio 10.18 – por toda Bíblia encontramos Javé como aquele que tem um carinho e cuidado especial com os órfãos (crianças em situação de vulnerabilidade), pois Javé “faz justiça ao órfão…”.

Transição: no relato as crianças não são sujeitos de ação, mas objeto da ação dos outros três personagens. Entretanto, um grupo que possui um valor especial no âmbito familiar, mas que é ao mesmo tempo vulnerável. Vamos ao primeiro grupo que interage com as crianças…

A multidão

O texto não diz quem trazia as crianças (o verbo está conjugado na 3ª pessoa do plural), mas quero aqui utilizar “multidão” para me referir ao grupo dessas pessoas que traziam suas crianças para serem tocadas por Jesus. Quem eram estas pessoas? – pela distinção que o texto propõe, não faziam parte do grupo mais próximo, os discípulos. Podia ser gente simples das aldeias por onde Jesus passava (pais, mães, parentes, avós, etc.) ansiosos que Jesus tocasse/abençoasse suas crianças.

Tocar nas pessoas era um traço significativo da atuação de Jesus. Diversas narrativas de milagres mencionam o toque de Jesus em pessoas que necessitavam da intervenção de Deus – para alguns era uma das poucas oportunidades de ser tocado por um homem cheio de Deus.

Por onde Jesus passava as pessoas ficavam maravilhadas com tudo o que viam Deus fazer por seu intermédio. A atuação de Jesus despertou naquelas pessoas o desejo de aproximarem suas crianças desse homem. O desejo de que tudo aquilo que estava acontecendo por meio Dele também alcançasse suas crianças. Queriam de alguma forma integrá-las naquilo que Deus estava fazendo em Jesus.

Transição: a multidão não era o grupo de discípulos mais próximos a Jesus, talvez o povo que o recebia nas aldeias e parava para ouvir e ver o que Deus estava fazendo através dele. Frente a esta iniciativa de aproximação das crianças interpõem-se um segundo grupo: os discípulos… que infelizmente não se apresentam como o modelo de ação.

Os discípulos

Diante deste movimento de aproximação de crianças, os discípulos são os que reagem da forma menos esperada: repreendiam os que ansiavam por aproximar suas crianças de Jesus. Todavia, “a reação dos discípulos, procurando afastar as crianças, reflete a atitude normal naquela sociedade” (PAGOLA, 2014: 68). Não era normal um varão honrado acolher crianças – os discípulos não eram maus, simplesmente reproduziam uma prática social comum. Embora as crianças tivessem valor, esse valor restringia-se mais ao ambiente doméstico.

Mas a pergunta que nos intriga é: por que impedir? O texto não responde, mas podemos imaginar duas opções:

  1. Jesus estava demasiadamente ocupado para ter trabalho com as crianças. Aquela seria uma interrupção de menor valor no programa do Mestre. Ou elas seriam demasiado insignificantes para o Mestre lhes dar atenção. Será que Jesus estava em um momento de descanso entre suas viagens?
  2. Mas também gostaria de observar a atitude de repreensão dos discípulos à luz da parábola que Lucas coloca nos vv. 9-14, a parábola do fariseu e do publicano. Nesta parábola o fariseu representa alguém que se orgulha pelas suas “credenciais”, de seus créditos acumulados. O texto não quer diminuir o valor de uma vida vivida em conformidade com a vontade de Deus, mas sim ser uma denúncia àqueles que fazem de sua vida religiosa uma carta de crédito diante de Deus. – Assim: quais eram as credenciais daquelas crianças? Qual sua importância para interromper o programa do Mestre?

Transição: a repreensão dos discípulos era fruto de uma forma de ver (“e os discípulos, vendo”). A forma de ver dos discípulos… talvez condicionada por uma falta de visão crítica de sua prática à luz do evangelho. Os discípulos se tornam repreensíveis…

Jesus

Vamos olhar para a atitude de Jesus a partir de dois pontos de vista:

Contexto histórico

A atitude bondosa e não convencional de Jesus. “Jesus adotará perante as crianças uma atitude pouco habitual neste tipo de sociedade. Não era normal que um varão honrado manifestasse para com as crianças essa atenção e acolhida que as fontes cristãs destacam em Jesus, em contraste com outras reações mais frequentes” (PAGOLA, 2014: 68).

A acolhida das crianças pode ser situada dentro do âmbito maior da atuação de Jesus. Jesus veio para acolher a todos. Porém, em uma sociedade marcada pelo valor das credenciais pessoais, Jesus deu ênfase acentuada na recepção daqueles considerados de menor valor: doentes, endemoninhados, mulheres… e crianças. A acolhida da criança, enquanto um ser vulnerável não era nada contraditório no contexto maior da atuação. Na linha narrativa de Lucas Jesus já havia tomado uma criança em seus braços, em 9.46-48. – Não criem embaraço (impedir, reter, negar) para elas!

Contexto literário

Jesus promove uma ressignificação do acolhimento e presença das crianças.  Jesus chama as crianças para junto de si, e faz delas uma lição pedagógica constante para os discípulos: “elas encarnam espontaneamente a atitude fundamental para entrar no reino de Deus” (Bíblia do Peregrino, p. 2516).

Sobre as crianças Jesus diz: “porque dos tais é o reino de Deus” (v.16). No contexto literário, o reino de Deus é das crianças simplesmente por que são crianças (inocentes, inculpáveis, etc.)? – Não! A resposta a esta pergunta encontra-se no versículo seguinte: “quem não receber o reino de Deus como uma criança”. O texto não fala de infantilidade, mas de mérito. À luz daquele contexto, que mérito tinham estas crianças que as tornava aceitas por Jesus? – Nenhum! Elas não estavam ali por seus méritos, ou valor social que as credenciava, mas pela gratuita acessibilidade a elas aberta por Jesus.

Assim, “em contraposição ao fariseu jactancioso de 18,9-14, os discípulos deveriam se dirigir a Deus como se fossem uma criancinha: com espontaneidade, um espírito de dependência, um senso de admiração e sem insígnias de realização. As portas do reino não se abrem para quem se comporta diferentemente” (Comentário São Jerônimo, p. 286). – Essa é a lógica que deve reger a vida e os relacionamentos daqueles que entram no Reino de Deus.

Desafios

Agora, retornando a nossa questão de abertura, quais as implicações do acolhimento e também da ressignificação deste acolhimento das crianças, por parte de Jesus, para nossa vida acadêmica, pastoral e comunitária?

Uma comunidade acolhedora: os discípulos já haviam visto Jesus acolher inúmeras pessoas de valor social menor aos olhos de um judeu do século I. Porém, mesmo assim, não conseguiram perceber a abertura que a atuação de Jesus poderia possibilitar às crianças. Quais são os grupos, hoje, que reconhecemos como gente de valor à luz do evangelho mas que são excluídas do nosso acolhimento comunitário?

Uma pastoral do acolhimento: imperceptivelmente os discípulos integraram em sua prática um modelo social válido em seu contexto, porém questionável à luz da prática de Jesus. A atitude de Jesus frente às crianças não era uma atitude convencional. Quais são as atitudes convencionais à nossa sociedade que temos validado em nossas práticas pastorais? (valor social, econômico, acadêmico, denominacional, etc.). Uma pastoral do acolhimento passa pela adoção de novas práticas, que nos são possibilitadas apenas pela crítica do evangelho à nossa atuação pastoral.

Ser criança no mundo de gente grande: Jesus não apenas acolhe aquelas crianças, mas também confere um novo significado a sua presença no meio dos discípulos: a presença delas deveria sempre remeter à gratuita acessibilidade aberta por Jesus. Elas seriam um lembrete constante da fonte que dinamiza a vida dos que entram no Reino de Deus. Uma vida marcada pela espontaneidade, por um espírito de dependência, por um senso de admiração e sem insígnias de realização.

Como somos cabeça-dura, vamos esquecer muitas vezes dessa lição. Porém, mesmo que venhamos a esquecer, Jesus ainda continua dizendo: “deixem vir a mim as criancinhas”.

Cezar Flora

Pastor da AD de Cambé, Pr.
Tutor da Faculdade Teológica Sul Americana

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